sábado, 9 de fevereiro de 2013

Medidas afirmativas são a solução para o país do imediatismo



Mateus  Magalhães







         Você já ouviu falar na palavra “meritocracia”? Como bem explicita seu prefixo e sufixo, trata-se de um sistema que valoriza o mérito como trampolim para que indivíduos atinjam posições sociais variantes a partir da capacidade dos mesmos. Em sociedades democráticas, o poder do mérito eleva os mais capazes a posições mais altas e, por sua vez, estimula a saudável competição pela excelência. Universidades públicas, isto é, aquelas custeadas por eu e você, escolheram este sistema para efetuarem uma triagem e abrirem suas portas aos mais capazes, instituindo juízos de valor variáveis em relação a cada curso e, partindo do pressuposto que fazem parte do que se convenciona chamar de educação superior, buscando alunos aptos e que realmente possuam vocação para a vida acadêmica.  A meritocracia não vê grupos sociais, minorias, maiorias, cor de pele, sexo ou características biológicas ou sociais; seu interesse reside na qualidade e nível de conhecimento de determinado candidato. Entretanto, existe uma variável, bem verdadeira em nosso país, que funciona como contraponto a este aparente funcionamento perfeito da meritocracia: nem todos têm acesso a um sistema de educação pública de qualidade que ofereça uma formação adequada para a adesão ao ensino superior. Desta variável, existem duas possíveis soluções a serem tomadas: uma delas defende uma manutenção geral do ensino público brasileiro que sofre com a danosa ingerência do estado; a outra, defendida por este mesmo estado, prevê medidas “sociais” para aliviar o problema. 

       Todo brasileiro conhece aquela expressão popular “tapar o sol com a peneira”. Cotas raciais, uma das medidas sociais do governo federal, é um exemplo perfeito disto. Têm se o rombo na educação pública, que recebe grande atenção nas propagandas de períodos de pleito no Brasil, mas vive, diariamente, com realidades de violência, locações totalmente impróprias para a prática de atividades letivas, professores extremamente mal remunerados arriscando suas vidas em salas de aula repletas de indivíduos violentos e um ambiente marginalizado, que vive e respira com dificuldade e definha lentamente no processo. Temos no Brasil o triplo de negros e pardos pobres do que outras etnias. É natural que a incidência dos mesmos dentre os frequentadores deste ensino público caótico seja maior e, por sua vez, seja difícil para que os mesmos galguem a posição de discentes posteriormente, naquele sistema de meritocracia. 

Agora, analisemos o conceito que exprime a palavra igualdade. O novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa diz o seguinte: igualdade. [do lat. Aequalitate] S. f. 1. Qualidade ou estado de igual; paridade. 2. Uniformidade, identidade. 3. Equidade, justiça. 4. Mat. Propriedade de ser igual. 5. Mat. Expressão de uma relação entre seres matemáticos iguais. No verbete referente ao que se indica como “Igualdade moral”, temos a seguinte explicação: “Relação entre os indivíduos em virtude da qual todos eles são portadores dos mesmos direitos fundamentais que provêm da humanidade e definem a dignidade da pessoa”. Em algum momento estas definições do nosso dicionário defendem teses de que direitos possam ser tolhidos para que grupos minoritários recebam algum tipo de compensação ou facilitação? Mesmo que da desigualdade, é possível imaginar algum conceito de isonomia que preveja a utilização de dispositivos para repararem-na passando por cima dos direitos coletivos e individuais de outros grupos? No momento em que se alija tal grupo dos mesmos direitos e deveres dos demais, não vivemos mais em um sistema igualitário. 

    Imaginar uma fantasia onde determinados grupos recebem mais direitos que outros para reparação histórica ou outra explicação sofistica de qualquer natureza é uma agressão declarada aos preceitos básicos da democracia, sistema político onde pretensamente vivemos. A tal reparação histórica trata-se de uma espécie de revanchismo, onde indivíduos que não participaram de tal evento terão de pagar por uma indenização de natureza duvidosa para os descendentes da escravidão no Brasil. Mas, no país que levanta altivamente a bandeira da miscigenação biológica e cultural de sua nação – com toda a razão, como definir quem é “negro” e quem não é? Você já parou para pensar que a maioria dos “negros” que conhece, no máximo, se enquadrariam na definição de pardos, isto é, negros miscigenados com brancos ou outros grupos étnicos?  Como arbitrar que o sangue de tal pessoa é mais de “escravo” e menos de “senhor de escravo”? Se você já teve a oportunidade de visitar uma favela no Rio Grande do Sul, pode surpreender-se com a quantidade de bebês de pele alva e olhos de tez clara vivendo em meio ao lixo e lama. Seriam eles algozes que merecem estar nesta posição social por descenderem de agentes da escravatura? Ou seriam vítimas assim como os negros que foram marginalizados após a abolição e tiveram de ir morar nestas favelas? Como dizer que eles não possuem sangue dos escravos e o “negro” na favela não possui sangue do descendente de europeu que transou com uma negra e deixou seu filho bastardo na clandestinidade? 

    Um dos argumentos dos pró-cotas é que a população negra no Brasil é uma maioria. Isto é mentira, pura e simples. O IBGE publicou, em seus dados de 2010, que 49% (cerca de 91 milhões) da população no país se declara branca, 43% (cerca de 82 milhões) parda e, apenas, 7%  (cerca de 14 milhões) se declara negra (ou, no termo técnico, preta). Vejamos, estes pardos seriam mais brancos ou mais negros? Quais se enquadram realmente no programa de cotas e quais não? E, ainda pior, existem conceitos de raça para a ciência moderna? O excelente livro “Humanidade sem Raças” (Publifolha, 2008), do geneticista Sérgio Pena, defende que não. Em sua definição, propõe “a substituição desses dois modelos prévios por um novo paradigma genômico/individual de estrutura da diversidade humana, que vê essa espécie dividida não em raças ou populações, mas em seis bilhões de indivíduos genomicamente diferentes entre si, mas com graus maiores ou menores de parentesco em suas variadas linhagens genealógicas”. Ou seja, Pena acredita que o modelo científico que prima por ver o ser humano como único, da qual não pode ser catalogado em um grupo, que não acredita na coletivização biológica e defende a existência de similaridades genéticas, seria o ideal. Enfim, neste processo, nosso sistema de cotas raciais não só falta com a verdade estatística, mas também quer retroceder cientificamente para um modelo em que Pena acredita ter dado subsídio para atrocidades cometidas por nações e impérios no passado e no presente. Um exemplo foi o massacre em Ruanda nos anos 90, onde dois grupos étnicos que foram separados por um processo de avaliação científica tomando o conceito de “raças” entraram em uma guerra civil violenta e chocaram o mundo com um episódio de genocídio brutal. 

    Temos um processo de relativização cultural grande em nosso país, que permite com que o sectarismo cultural que é visto em países como os EUA, onde negros e brancos fazem parte de diferentes “comunidades” e até mesmo não se toleram fora de seus limites, não seja um problema. As cotas suscitam o erro crasso de infindáveis discussões raciais, que talvez tragam ao nosso país este rompimento cultural e um ódio entre grupos sociais que acreditarão estarem sendo sabotados, não pelo estado, mas por pessoas de cores diferentes. Os mesmos EUA, pioneiros no sistema, revogaram sua ação tendo em vista o ódio crescente que fomentou entre estes grupos. Ou seja, estamos importando um sistema que gerou mais problemas do que soluções.  

      A maioria dos negros privilegiados pelo sistema de cotas serão pobres, é verdade. Mas eles deixarão de ser pobres ao entrarem na faculdade? Se você já esteve em um ambiente acadêmico sabe que a ideia de que é “de graça” é, fundamentalmente, uma imodicidade. Gastos com livro, material didático em geral, xerox, alimentação, transporte coletivo (...) que não serão subsidiados pelo governo. Quem vai pagar esta conta? Como uma Medeia excepcionalmente cruel, com a perfídia que lhe faz característica, o estado pega seus filhos pela mão, os joga na cova dos leões e os abandona, para depois preconizar-se alegando que fez o que podia para garantir-lhes um futuro. Hoje, nosso país está atrás da Bolívia no ranking de qualidade de educação básica da UNESCO. E, sim, falamos do estado que se gaba de ser a sexta economia do mundo, à frente da Inglaterra, segundo lugar no mesmo ranking. É, no mínimo, ingenuidade não perceber que estamos em um país que possui uma máquina de estado riquíssima e uma população que paga por isso e não vê sombra de retorno. 

    Para remendar sua incompetência homérica, o estado cria políticas públicas como as cotas, fracasso retumbante nos países em que anteriormente foi empregada, e repassa à população uma fantasia quixotesca de que é uma etapa necessária para se chegar à igualdade. O Brasil nunca será igualitário com um estado bicho-papão, que cresce desenfreadamente e recolhe, para manter a farra, a maior carga tributária do mundo. O primeiro inimigo, mais ardiloso e insidioso, não quer devolver este dinheiro e irá sempre apelar para o caminho mais fácil e mais barato. Cabe ao cidadão que paga por este escárnio virulento se opor e fazer ouvir sua voz, refutando suas demagogias e sofismas e, acima de tudo, pensar e se informar muito bem antes de levantar qualquer bandeira de imediatismos como “ação afirmativa” ou articulação do politicamente correto que tenha o dedo deste estado que trabalha para si, apenas para si. 

   Frederick Douglass, nome pouco conhecido no meio de Barack Obamas e Luther Kings, foi um dos maiores nomes da história negra no mundo ocidental e advogado incansável da igualdade racial, social e sexual. Para encerrar este texto, faço uso de suas palavras: “O que precisamos fazer com o negro? Não faça nada com o negro. (…) Tudo que peço é que lhe dê a chance de se sustentar com suas próprias pernas (…). Se você somente desamarrar suas mãos e dá-lo uma chance, eu penso que ele sobreviverá”.

*Originalmente publicado no jornal Folha Gaúcha, edição 80 sob o título "Cotas Raciais: a solução do imediatismo no país da desigualdade"

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